reportagem especial

FOTOS: Feira do Livro ganhou novas páginas de inclusão cultural e social

Pâmela Rubin Matge


Foto: Pedro Piegas (Diário)

A poucos metros do ambiente onde a Feira do Livro promovia uma contação de histórias, cujo livro contava o dia a dia de Iara/Yara, uma menina da cidade e outra da floresta amazônica, duas crianças indígenas permaneciam sentadas no chão, em frente a uma farmácia do Calçadão de Santa Maria. Ao lado da mãe, que vendia cestas de palha, elas passavam despercebidas aos largos passos de quem cruzava por ali. De algumas pessoas, ganhavam moedas pela compra da mercadoria ou por mera caridade.

Na tarde do mesmo dia, Cristian Sehnem, que é uma pessoa com deficiência visual, encontrou apenas em uma das 40 bancas da feira, livros em braille. Dos títulos disponibilizados, todos eram de literatura infantil.

À noite, o espaço Livro Livre trouxe pela primeira vez uma escritora transexual: a escritora Atena de Beauvoir. Porém, o convite e o custeio para que filósofa pudesse participar da feira foi por conta da presidente da ONG Igualdade, Marquita Quevedo.

As três cenas descritas apontam para uma realidade: a democratização das atividades culturais de Santa Maria precisa ser ampliada, conforme defendem professores, escritores e público em geral nas páginas desta reportagem.

A 46ª edição da Feira do Livro - que começou em 26 de abril e segue até 11 de maio - tem provado o quanto a literatura pode atuar como um instrumento de inclusão. São oficinas junto ao Centro de Atendimento Socioeducativo (Case), que abriga adolescentes infratores, apresentações indígenas de caingangues e guaranis e demais atividades do Leitura Inclusiva. Entre as ações, participam o Projeto Cegueira e Baixa Visão, do Núcleo de Acessibilidade da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); pessoas com deficiência auditiva ou surdez, da Escola Estadual Reinaldo Coser e da Associação de Surdos de Santa Maria (ASSM), Projeto Mãos Livres e Núcleo de Ações Afirmativas da UFSM, com a promoção da cultura literária negra pela escritora e Maria Rita Py.

Assessora pedagógica da Educação Especial da 8ª Coordenadoria Regional da Educação (8ª CRE), escritora e surda parcial, Maria Esther Gomes de Souza comemora as atividades, mas enfatiza que é preciso compreender o diferente. No dia 10, às 17h, ela lança seu quarto livro: Mil estrelas estão passando.

- As pessoas costumam ter medo do diferente. Se eu digo que sou surda, me olham diferente. A leitura/literatura pode incluir quando conta sobre pessoas e mundos diferentes. Quando amplia o conhecimento, liberta e aproxima. Mas, se for acessível, ela vai ultrapassar obstáculos e, por isso, tenho esperança de ser com os livros e com informação que a gente vai evoluir e se tornar pessoas melhores - diz a escritora.

 CULTURA INDÍGENA PARA INFORMAR E APROXIMAR

Foto: Pedro Piegas (Diário)

Algo diferente aconteceu com as crianças das aldeias Guarani e Caingangue durante uma contação de histórias na programação da Feira do Livro, na última terça-feira. As páginas do livro da arte-educadora portuguesa Margarida Botelho despertaram diante daqueles olhos e ouvidos atentos, uma relação de identificação, aproximação e pertencimento. De alguma maneira, eles se enxergavam na história.

Ao ser compartilhada, a obra Yara/Iara, dois mundos foram apresentados. O de Yara, a menina que vive em um país da Europa, e de Iara, uma índia Kayapó brasileira. Separadas geograficamente, o cotidiano, as brincadeiras, a alimentação, o vestuário, as crenças e as festas apontavam para contraste de culturas.

De forma interativa, a autora fez questionamentos e traçou relações com Santa Maria bem como a vivência dos alunos em suas aldeias:

- Essa experiência pode representar que há livros que também retratam suas vidas, não só a vida de crianças brancas, urbanas. Isso é muito significativo para a valorização da cultura deles - enfatizou a autora portuguesa.

Iara/Yara são histórias documentais que integram o projeto Encontros. A iniciativa deu largada em 2012 e contou com apoio do Programa Inov-Art da Unesco. O projeto percorreu Moçambique, Timor-leste, Cabo Verde e a comunidade ribeirinha na reserva do Uatumã, na Bacia do Rio Xingu, na Amazônia Brasileira. Pouco tempo depois da publicação, a aldeia onde vivia a personagem Iara acabou devastada pela construção da hidroelétrica de Belo Monte.

- Os rostos que aparecem nos livros são de meninas reais, que fotografamos e, depois, montamos a ilustração. Criamos diários, oficinas e depois é que nasceu o livro. É essa experiência que levo para todo lugar e, assim, conseguimos "nos encontrar". Muitas das línguas indígenas são orais, mas, existem a música e a dança que são formas de escrever com o corpo. Na Amazônia, trabalhei com muitas pessoas que eram analfabetas, mas a literatura estava viva ali - explica Margarida.

Foto: Pedro Piegas (Diário)

PROTAGONISMO
O cacique da Aldeia Guaviraty Porã e professor de arte e valores da cultura indígena na Escola Yvyra'ija Tenonde Vera Miri, afastada cerca de 15 km do centro de Santa Maria, lembra que não é a primeira vez que os alunos participam de oficinas ou apresentações. A diferença é que, nesta edição do evento, eles são protagonistas das histórias contadas, e a Feira do Livro traz uma escritora que incentiva novas produções: 

- Neste ano, todos gostaram muito e até tiveram vontade de escrever. Temos a biblioteca na sala de aula e muitos livros em português que ajudam a "soltar a língua". Mas esse contato com a comunidade é importante para que enxerguem o índio com outros olhos. Para as crianças, é diferente ler livros sobre indígenas, que são poucos Não achamos na nossa língua-mãe aqui na feira.

Coordenadora da mesma escola, a professora Priscilla Kieling de Oliveira acrescenta que a autoestima trabalhada em sala de aula foi reforçada na iniciativa de a feira trazer uma escritora com tamanha sensibilidade.

- Ocupar esses espaços é uma questão de resistência para eles. Eles se reconhecem. Não são mais só os índios que vendem artesanato ou que ficam lá na aldeia. São pessoas que podem estar em todo lugar, inclusive, na universidade, no mercado de trabalho e nas páginas dos livros, que não precisam ter só princesas - pontua a professora.

"QUE TIPO DE INCLUSÃO A GENTE QUER?"Foto: Pedro Piegas (Diário)

"Disseram-me: 'Hoje tem literatura inclusiva porque você está aqui, como mulher trans'. Teria sido inclusiva se eu visse trabalhando nas bancas homens e mulheres trans. Se tivesse aqui, entre o público que veio me assistir, homens e mulheres trans. seria inclusiva, Se durante o dia, essas pessoas estivessem comprando e digerindo literatura e não como o que aconteceu ontem: as primeiras mulheres trans que vi, desde que cheguei, foram em uma esquina. Eram jovens, de 14 ou 15 anos. Qual o tipo de inclusão que a gente quer?"

De nome inspirado na mitologia grega combinada com a mais celebrada expressão do feminismo, o desabafo acima é de Atena de Beauvoir. A autora marcou história com a força da sua literatura. Foi a primeira vez, em 46 edições de Feira do Livro que uma escritora transexual ganhou o microfone deixando extasiado o público que a assistia e a aplaudia.

Assista a conversa a íntegra do bate papo com Atena

Autointitulada prostituta do saber, Atena é a poeta, filósofa e educadora transexual que defende que "as pessoas trans são as pessoas mais livres que a sociedade conhece", escolhem do nome ao corpo que querem ter. Premiada pela sua atuação em defesa e promoção dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Estado, é também integrante do núcleo de estudos e pesquisas em educação, gênero e sexualidade (Nepegs) do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS).

Sua voz e seus escritos, entre eles, Phóda e Libertê, denunciam injustiças, levam crítica social e refinamento poético com base no existencialismo francês, na filosofia de Jean-Paul Sartre e de Simone de Beauvoir.

Na Saldanha Marinho, o sentido da inclusão foi desdobrado nos versos que recitou, na fala das próprias experiências, na observação de relações sociais diversas e no que autora compartilhou sobre seus estudos em transantropologia: termo que ela utiliza para defender uma epistemologia, isto é, uma produção intelectual de pessoas trans sobre si.

RAP E LITERATURA
Com olhar crítico sobre a cidade, Atena falou à reportagem do Diário que é preciso ampliar o olhar sobre inclusão e literatura. Para ela, as características de uma cidade jovem e universitária pareceram tímidas diante do evento literário da praça:

- Com esse formato, a Feira do Livro cumpre, de fato, o impacto cultural a que se propõe? - questionou a autora.

Foto: Pedro Piegas (Diário)

Para além dos dias de feira, mencionou a atuação do Coletivo de Resistência Artística Periférica (CO-RAP), mais uma vez, deixando provocações:

- A gente tem, em Santa Maria, um slam*. Tem um grupo de hip hop e rap que faz batalha de rima em praça pública (na Praça dos Bombeiros, mensalmente). Não é nenhuma empresa, não é nenhuma instituição, é o jovem que sente a necessidade de produzir literatura. Vão na praça pública, no frio, sem luz, sem tenda, no gogó). A Feira do Livro é uma vez por ano, essa gurizada, uma vez a cada mês. Quantos de nós sabemos que isso é literatura?

A vinda da escritora foi viabiliza pelo Conselho Municipal de Política Cultural, com recursos da ONG Igualdade, presidida por Marquita Quevedo.

*Popularizado no Brasil, oslam  começou nos Estados Unidos nos anos 1980 sob influência do movimento de slam poetry, com versos livres. É uma palavra de língua inglesa quer dizer "batida". A iniciativa era de se fazer a poesia descer as ruas, "na batida, na lata". Na década de 1990, na França, o movimento se intensifica essencialmente poético, mas, sobretudo, social. Aqueles que participam de um Slam declamam, movimentam o corpo, improvisam seu texto com outros slammers.

 DE 40 BANCAS, APENAS UMA VENDE LIVROS EM BRAILLEFoto: Pedro Piegas (Diário)

Já é o terceiro ano que o técnico em educação Cristian Sehnem acompanha oficinas de leitura inclusiva em Santa Maria. A atividade, que também ocorre em outras cidades do Estado, objetiva mostrar que toda e qualquer pessoa tem direito à leitura. Neste ano, crianças da rede pública de ensino e a população em geral puderam saber mais sobre literatura e acessibilidade no espaço Leitura Inclusiva na 46ª Feira do Livro.

Sehnem, que é uma pessoa com deficiência visual, esteve presente nas oficinas, bem como mero visitante do evento. Na expectativa de comprar novos livros, acabou saindo do evento com apenas um exemplar. Isso porque, segundo ele, das 40 bancas da feira, apenas uma - a da editora Paulinas - oferecia livros em braille e, ainda assim, com conteúdos limitados.

- O nosso raciocínio se dá principalmente por palavras, embora existam outras linguagens. Mas é a palavra, a escrita que mostra quem somos, o que pensamos, o que podemos. Aí, vamos analisar a questão das bancas. O que temos de livros em braille? Ou ainda, o que temos em livros em guarani, ou que os personagens são negros e estão na capa? A reflexão é ampla e, felizmente, a gente está conseguindo (por meio de oficinas) trazer reflexão dentro da Feira do Livro, mas tomara que ano que vem a gente consiga ampliar isso. Eu, como uma pessoa cega, só tenho acesso a livros infantis? Acho que era algo em torno de 15 infantis em braile, e seis ou sete livros falados (áudio-livro). E desses, só um que não era de autoajuda. A possibilidade é muito pequena em milhões de livros que a feira oferece - avalia.

Foto: Pedro Piegas (Diário)

Outro ponto mencionado foi com relação à acessibilidade:

  - A pessoa cega que já mora em Santa Maria até tem uma facilidade em andar pela praça, mas com a colocação dos estandes fica difícil. Sabermos da dificuldade que é a falta recursos, mas, há anos, a feira é sempre do mesmo formato e precisa melhorar bastante. Seriam necessárias adaptações. Se tivesse, por exemplo, piso tátil-móvel ou outras estruturas arquitetônicas, teríamos mais autonomia para visitar o local - explica.

A MAIS DEMOCRÁTICA DAS FEIRAS", DIZ SECRETÁRIA
Feira do Livro sempre precisa evoluir, conforme a secretária de Cultura, Esporte e Lazer, Marta Zanella. Contudo, ela defende e orgulha-se da edição de 2019:

- Foi a mais democrática das feiras. Tivemos programação para o público indígena, para pessoas com deficiência. A vida da Atena (escritora transexual) foi um destaque. Sem falar da Eliane Brum, a maior voz dos Direitos Humanos no país.

Segundo a secretária, para 2020, devem ser melhorados dois aspectos: o de acessibilidade - com o replanejamento dos espaços para melhor circulação do público, sobretudo para cadeirantes e para pessoas cegas, bem como atrações que evidenciem a cultura periférica.

A produtora cultural da Feira do Livro, Rose Carneiro,acrescenta que ações que visem a inclusão devem ser a regra e nunca exceção em eventos voltados à promoção de cultura e difusão do conhecimento.

- Temos sempre que melhorar, a feira tem de ser para todos. Na segunda-feira, o Maurício Leite (patrono) visitará os presídios (Regional e Penitenciária Estadual de Santa Maria). Isso é inclusão, é uma forma de tu buscar tua liberdade por meio da leitura - avalia.

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